Ensinamentos do
passado: uma reflexão com base no artigo de Henrique, A. B.
Robson Matos
Recebi o
artigo a seguir (Henriques, A. B Cadernos
de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 14(4),
625-642, 2006) da minha querida e amada prima, Marília Mattos. Tento nesse texto traçar um
paralelo entre a pandemia da gripe espanhola e a pandemia da Covid-19 em termos
do negacionismo, da demora em tomar decisões e da diferença social da
população.
Já no Resumo do artigo o autor cita: “A gripe espanhola, em Cataguases, acabou,
como em outros lugares, sendo esquecida com o passar dos anos. A memória sobre
os fatídicos meses do final de 1918 parece ter-se diluído entre tantos outros
eventos daquela época”. Talvez esse seja o primeiro erro que estamos
cometendo no momento: esquecer as experiências do passado de como lidar com uma
pandemia, também causada por um vírus, naquela época. Por mais que tenhamos evoluído
científica e tecnologicamente, jamais podemos nos esquecer dos ensinamentos do
passado.
Em muitos aspectos, como pretendo
destacar nesse texto, a pandemia da gripe espanhola (1918) lembra a pandemia
atual. Da mesma forma que a pandemia causada pelo novo coronavírus, aquela da
gripe espanhola também surpreendeu pela sua velocidade de expansão e virulência,
como aponta o autor em um dos trechos da introdução: “Sendo a gripe normalmente considerada uma doença benigna, a pandemia surpreendeu
pela velocidade de expansão e virulência”.
A gripe espanhola foi trazida para o
Brasil, assim como a Covid-19, do exterior. Ela chega ao Brasil, em setembro de
1918, quando o navio inglês Demerara atraca nos portos de Recife, Salvador e
Rio de Janeiro. No dia 24 de setembro o jornal A Tarde (Rio de Janeiro) informa
que 700 pessoas haviam contraído a doença. A doença então se espalha pelo
Brasil.
A doença trouxe consigo, da mesma forma
que na pandemia atual, o negacionismo. Em sua edição de 17 de outubro de 1918 o
jornal Cataguazes anunciava: “Tem havido
um ou outro caso fatal, entre os milhares de enfermos em consequência de
incômodos diversos. A sugestão é tudo no caso, e é ela a verdadeira causa da
enfermidade, que não tem gravidade”. O mesmo artigo do citado jornal
afirmava que embora benigna ela requeria alguns cuidados. Os cuidados haviam
sido elaborados pela Inspetoria Naval e distribuídos entre os navios de guerra
da Marinha. Vejam que os cuidados não são muito diferentes daqueles hoje
recomendados pela OMS:
1. “usar gargarejos e colutórios de solução de
ácido tímico a um por mil, ou de água com suco de limão;
2. usar instilações nas narinas de óleo gomenolado, ou vaselina
mentolada, ou ainda de algodão Formar;
3. tomar uma cápsula de 25 centigramas de um sal de quina e arrenal;
4. lavar as mãos, rosto, especialmente a barba freqüentemente, em água
5. levemente anti-séptica, especialmente antes e depois das refeições;
6. evitar as mudanças bruscas de locais e de temperaturas diferentes;
7. não conservar no corpo roupas úmidas de suor e mudá-las quando isso
suceder;
8. evitar o contato de moscas nos alimentos e usar das verduras só depois
de cozidas e de frutos depois de bem lavados.”
Chamo a
atenção principalmente para os itens 3 (o precursor da famosa cloroquina), 4 e
6. As recomendações eram mais enfáticas para os idosos, da mesma forma atual.
Era também muito difundido o uso, além de sais de quina, de Emulsão Scott, um medicamento largamente
utilizado pela população à época e dizia-se ser capaz de curar várias
moléstias.
O autor, no referido artigo, cita de
maneira correta, a existência do negacionismo: “A negação inicial da presença da doença na cidade corrobora aspectos apontados
pela historiografia das epidemias como recorrentes a esses episódios. Entre
alguns dos aspectos considerados típicos aos eventos epidêmicos, pode-se citar
a demora no reconhecimento, e na aceitação da presença das epidemias. Essa
demora é justificada pelo medo e pelos difusos interesses que podem ser ameaçados
durante as epidemias”.
Cataguases era uma cidade pacata do
interior mineiro, todavia, tinha uma grande proximidade com a cidade do Rio de
Janeiro, então capital federal, e era ligada a ela, diariamente, pela Estrada
de Ferro Leopoldina. Acredita-se que a doença chegou a Cataguases pelos trilhos
da Leopoldina. A cidade seguia com a sua vida normal, inclusive com o antigo
Cine Teatro Recreio mantendo suas apresentações noturnas da Cia. Flora Sorriso.
A imprensa local, como porta voz das
autoridades locais, procurava tranquilizar a população para diminuir os temores
e o pânico. Vale destacar um trecho do artigo em relação a isso: “Uma maneira de acalmar, todavia, contraditória,
uma vez que, como prevenção, aconselhava as pessoas a evitar a aglomeração
noturna, e ao mesmo tempo, dava notícias sobre os espetáculos noturnos
realizados na casa de shows da cidade”.
O Agente do Executivo Municipal toma,
então, a primeira medida para o combate à pandemia. Ele divide a cidade em 11
zonas e a cada uma delas indica um responsável de sua confiança para informa-lo
dos casos da gripe espanhola. Só no dia 10 de novembro, quase um mês após a
indicação da presença da gripe espanhola em Cataguases, o jornal Cataguazes
começa a reconhecer a gravidade da doença no município. Segundo o jornal, a
vida econômica da cidade havia sido subitamente perturbada. O Cine Teatro
Recreio, apontado pelo mesmo jornal como símbolo da normalidade da cidade, cancela
os espetáculos até então rotineiros, o Ginásio Cataguases cancela todas as suas
aulas e um banquete que seria oferecido pelo deputado Astolpho Dutra a
correligionários políticos foi cancelado.
Só ao final do mês de outubro de 1918 o
Agente Executivo Municipal toma providências contra a pandemia e publica um
decreto que pode ser visto às páginas 634 e 635 do referido artigo (anexo).
As subnotificações eram, como hoje um
grande problema como no trecho do artigo: “Estes
dados mostram que o número de mortes causadas pela gripe deve ter sido bem maior
que o registrado oficialmente. A discrepância entre as mortes hospitalares e os
sepultamentos deve ter se repetido entre o número de gripados notificados e
aqueles que adoeceram, mas não procuraram serviços médicos ou não foram
reconhecidos como casos da doença pelas pessoas nomeadas pelo agente executivo”.
Todavia, sob meu ponto de vista, e vergonhoso continuarmos com problemas de
subnotificações quase 102 anos depois. Nesses 102 anos a ciência avançou
tremendamente e novas tecnologias estão disponíveis para se evitar a
subnotificação.
Da mesma forma que em 1918, a epidemia
foi mais letal entre os mais pobres: “Em
nosso caso, na epidemia de gripe espanhola em Cataguases, os pobres parecem ter
sido os mais vulneráveis à ação do vírus da influenza. Ainda que a
suscetibilidade à infecção fosse universal, o acesso a bens e serviços
certamente diferia por classe social”. Ou seja, passaram-se 102 anos e
ainda não fomos capazes de diminuir o abismo social existente na sociedade
brasileira.
A epidemia da gripe espanhola em Cataguases
durou pouco. Ao final do mês de dezembro daquele ano, a cidade havia voltado ao
normal e a epidemia havia sido esquecida.
No último parágrafo de seu artigo o autor
destaca: “Apesar de sua pujança sendo,
talvez, a mais devastadora catástrofe do século XX, a gripe espanhola, em
Cataguases, acabou, como em outros lugares, sendo esquecida com o passar dos
anos. A memória sobre os fatídicos meses do final de 1918 parece ter-se diluído
entre tantos outros eventos daquela época”. Talvez seja esse, o erro que
ainda cometemos, ou seja, esquecer dos ensinamentos do passado, por mais
avançados científica e tecnologicamente sejamos.
A “INFLUENZA HESPANHOLA” EM CATAGUASES, MINAS GERAIS (Henriques, A. B Cadernos de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 14(4), 625-642, 2006)
A “INFLUENZA HESPANHOLA” EM CATAGUASES, MINAS GERAIS (Henriques, A. B Cadernos de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 14(4), 625-642, 2006)
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