Pesquisar este blog

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Covid-19: Ensinamentos do passado: uma reflexão com base no artigo de Henrique, A. B.


Ensinamentos do passado: uma reflexão com base no artigo de Henrique, A. B.
Robson Matos
Recebi o artigo a seguir (Henriques, A. B Cadernos de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 14(4), 625-642, 2006) da minha querida e amada prima, Marília Mattos. Tento nesse texto traçar um paralelo entre a pandemia da gripe espanhola e a pandemia da Covid-19 em termos do negacionismo, da demora em tomar decisões e da diferença social da população.
Já no Resumo do artigo o autor cita: “A gripe espanhola, em Cataguases, acabou, como em outros lugares, sendo esquecida com o passar dos anos. A memória sobre os fatídicos meses do final de 1918 parece ter-se diluído entre tantos outros eventos daquela época”. Talvez esse seja o primeiro erro que estamos cometendo no momento: esquecer as experiências do passado de como lidar com uma pandemia, também causada por um vírus, naquela época. Por mais que tenhamos evoluído científica e tecnologicamente, jamais podemos nos esquecer dos ensinamentos do passado.
Em muitos aspectos, como pretendo destacar nesse texto, a pandemia da gripe espanhola (1918) lembra a pandemia atual. Da mesma forma que a pandemia causada pelo novo coronavírus, aquela da gripe espanhola também surpreendeu pela sua velocidade de expansão e virulência, como aponta o autor em um dos trechos da introdução: “Sendo a gripe normalmente considerada uma doença benigna, a pandemia surpreendeu pela velocidade de expansão e virulência”.
A gripe espanhola foi trazida para o Brasil, assim como a Covid-19, do exterior. Ela chega ao Brasil, em setembro de 1918, quando o navio inglês Demerara atraca nos portos de Recife, Salvador e Rio de Janeiro. No dia 24 de setembro o jornal A Tarde (Rio de Janeiro) informa que 700 pessoas haviam contraído a doença. A doença então se espalha pelo Brasil.
A doença trouxe consigo, da mesma forma que na pandemia atual, o negacionismo. Em sua edição de 17 de outubro de 1918 o jornal Cataguazes anunciava: “Tem havido um ou outro caso fatal, entre os milhares de enfermos em consequência de incômodos diversos. A sugestão é tudo no caso, e é ela a verdadeira causa da enfermidade, que não tem gravidade”. O mesmo artigo do citado jornal afirmava que embora benigna ela requeria alguns cuidados. Os cuidados haviam sido elaborados pela Inspetoria Naval e distribuídos entre os navios de guerra da Marinha. Vejam que os cuidados não são muito diferentes daqueles hoje recomendados pela OMS:
1. usar gargarejos e colutórios de solução de ácido tímico a um por mil, ou de água com suco de limão;
2. usar instilações nas narinas de óleo gomenolado, ou vaselina mentolada, ou ainda de algodão Formar;
3. tomar uma cápsula de 25 centigramas de um sal de quina e arrenal;
4. lavar as mãos, rosto, especialmente a barba freqüentemente, em água
5. levemente anti-séptica, especialmente antes e depois das refeições;
6. evitar as mudanças bruscas de locais e de temperaturas diferentes;
7. não conservar no corpo roupas úmidas de suor e mudá-las quando isso suceder;
8. evitar o contato de moscas nos alimentos e usar das verduras só depois de cozidas e de frutos depois de bem lavados.”
Chamo a atenção principalmente para os itens 3 (o precursor da famosa cloroquina), 4 e 6. As recomendações eram mais enfáticas para os idosos, da mesma forma atual. Era também muito difundido o uso, além de sais de quina, de Emulsão Scott, um medicamento largamente utilizado pela população à época e dizia-se ser capaz de curar várias moléstias.
O autor, no referido artigo, cita de maneira correta, a existência do negacionismo: “A negação inicial da presença da doença na cidade corrobora aspectos apontados pela historiografia das epidemias como recorrentes a esses episódios. Entre alguns dos aspectos considerados típicos aos eventos epidêmicos, pode-se citar a demora no reconhecimento, e na aceitação da presença das epidemias. Essa demora é justificada pelo medo e pelos difusos interesses que podem ser ameaçados durante as epidemias”.
Cataguases era uma cidade pacata do interior mineiro, todavia, tinha uma grande proximidade com a cidade do Rio de Janeiro, então capital federal, e era ligada a ela, diariamente, pela Estrada de Ferro Leopoldina. Acredita-se que a doença chegou a Cataguases pelos trilhos da Leopoldina. A cidade seguia com a sua vida normal, inclusive com o antigo Cine Teatro Recreio mantendo suas apresentações noturnas da Cia. Flora Sorriso.
A imprensa local, como porta voz das autoridades locais, procurava tranquilizar a população para diminuir os temores e o pânico. Vale destacar um trecho do artigo em relação a isso: “Uma maneira de acalmar, todavia, contraditória, uma vez que, como prevenção, aconselhava as pessoas a evitar a aglomeração noturna, e ao mesmo tempo, dava notícias sobre os espetáculos noturnos realizados na casa de shows da cidade”.
O Agente do Executivo Municipal toma, então, a primeira medida para o combate à pandemia. Ele divide a cidade em 11 zonas e a cada uma delas indica um responsável de sua confiança para informa-lo dos casos da gripe espanhola. Só no dia 10 de novembro, quase um mês após a indicação da presença da gripe espanhola em Cataguases, o jornal Cataguazes começa a reconhecer a gravidade da doença no município. Segundo o jornal, a vida econômica da cidade havia sido subitamente perturbada. O Cine Teatro Recreio, apontado pelo mesmo jornal como símbolo da normalidade da cidade, cancela os espetáculos até então rotineiros, o Ginásio Cataguases cancela todas as suas aulas e um banquete que seria oferecido pelo deputado Astolpho Dutra a correligionários políticos foi cancelado.
Só ao final do mês de outubro de 1918 o Agente Executivo Municipal toma providências contra a pandemia e publica um decreto que pode ser visto às páginas 634 e 635 do referido artigo (anexo).
As subnotificações eram, como hoje um grande problema como no trecho do artigo: “Estes dados mostram que o número de mortes causadas pela gripe deve ter sido bem maior que o registrado oficialmente. A discrepância entre as mortes hospitalares e os sepultamentos deve ter se repetido entre o número de gripados notificados e aqueles que adoeceram, mas não procuraram serviços médicos ou não foram reconhecidos como casos da doença pelas pessoas nomeadas pelo agente executivo”. Todavia, sob meu ponto de vista, e vergonhoso continuarmos com problemas de subnotificações quase 102 anos depois. Nesses 102 anos a ciência avançou tremendamente e novas tecnologias estão disponíveis para se evitar a subnotificação.
Da mesma forma que em 1918, a epidemia foi mais letal entre os mais pobres: “Em nosso caso, na epidemia de gripe espanhola em Cataguases, os pobres parecem ter sido os mais vulneráveis à ação do vírus da influenza. Ainda que a suscetibilidade à infecção fosse universal, o acesso a bens e serviços certamente diferia por classe social”. Ou seja, passaram-se 102 anos e ainda não fomos capazes de diminuir o abismo social existente na sociedade brasileira.
A epidemia da gripe espanhola em Cataguases durou pouco. Ao final do mês de dezembro daquele ano, a cidade havia voltado ao normal e a epidemia havia sido esquecida.
No último parágrafo de seu artigo o autor destaca: “Apesar de sua pujança sendo, talvez, a mais devastadora catástrofe do século XX, a gripe espanhola, em Cataguases, acabou, como em outros lugares, sendo esquecida com o passar dos anos. A memória sobre os fatídicos meses do final de 1918 parece ter-se diluído entre tantos outros eventos daquela época”. Talvez seja esse, o erro que ainda cometemos, ou seja, esquecer dos ensinamentos do passado, por mais avançados científica e tecnologicamente sejamos.
A “INFLUENZA HESPANHOLA” EM CATAGUASES, MINAS GERAIS (Henriques, A. B Cadernos de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro14(4), 625-642, 2006)

Nenhum comentário:

Postar um comentário